segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Querida I.,

Escrevo-te de dentro do casulo de um domingo. O sol à minha frente está a cinco centímetros de desaparecer atrás de um prédio. Lisboa está aos pés, envolta numa sugestão de nevoeiro. A noite cresce de baixo para cima: lá em baixo é já noite, aqui em cima ainda não.

Perguntas-me na tua carta se a tua cabeça me faz tanta confusão como a ti. Creio que nenhuma cabeça nos faz mais confusão que a nossa própria. No meio das tuas questões e fissuras és ainda uma pessoa funcional,
e se tento virar para mim essa ideia não me vejo nela. Tentar funcionar é o meu desafio diário. Far-te-á isto confusão, querida I.? É apenas natural esta estranheza recorrente em relação a nós próprios especialmente quando confrontados com os outros. Todos os dias tento subtrair-me ao meu mundo interior para me conseguir somar ao exterior, e todos os dias ressoa em mim, como uma assombração, uma frase do Pessoa «exteriorizei-me tanto que dentro de mim não existo senão exteriormente». Temo tudo aquilo que me poderá rouba a mim própria, tudo menos o amor. Porque será isto se, na verdade, não há nada que nos roube tanto a nós próprios? Será que só concebo a ideia de ser absolutamente tomada - e este absoluto só se realiza no amor - ou não tomada de todo?

Dizes-me que gostava de ser tão livre quanto eu e eu gostava de te dizer que te atrevesses a sonhar, a sonhar mais e melhor para ti. Que te assumisses enquanto escritora - que és - e que vivesses ao encontro disso. Acho que essa liberdade de que falas e que vês em mim não mais é que uma imensa desresponsabilização do que os outros querem de mim. Só aceito que queiram para mim aquilo que eu própria quero. É sob esta premissa que se constrói a nossa família escolhida - as pessoas de quem nos rodeamos - e que tiramos poder à nossa família designada. Atenta nisto: nós não devemos nada ao sangue. Só devemos a nós próprios. Sobretudo pessoas como tu, devem a si próprias a sua realização porque quando pessoas como tu se realizam o mundo regozija.

Não há outra liberdade que não esta: sabermos quem somos para além de condicionantes e agrilhoamentos exteriores.

Portanto, sim I. Sim, vale a pena escrever. Sim, vale a pena continuar o blogue. Sim, vale a pena procurar editoras. Sim, vale a pena fazer as tuas peças acontecer. E sobretudo I., sim vale a pena viver a vida como a havemos de contar.

Agora o sol caiu. À minha frente, entre mim e o horizonte, uma fileira de prédios arde.

Tua,
J.

Sem comentários:

Enviar um comentário