sábado, 8 de março de 2014

10 de março de 2014

Querida J.,

Precisava tanto de falar contigo.
Precisava de ouvir a música do Sérgio Godinho contigo - a R. podia voltar a imprimir verso a verso a letra para te dar - e ai eu teria a certeza que hoje é finalmente o primeiro dia do resto da minha vida.

Escreve-me. Sinto-me sozinha.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Dia 24 de fevereiro de 2014 (20:33)



Querida J,,

Gosto muito de ti. Faltou-me dizer isto.
Acredito que existem momentos na nossa vida em que o nosso corpo encontra a nossa sombra. Acredito que às vezes somos apenas um corpo sem sombra mas também acredito que por vezes eles se encontram sem desejo. Estes momentos de encontro não são decididos pelo corpo nem pela sua sombra mas são destinados pelo acaso.
O que relataste que te aconteceu lembrou-me imediatamente o momento em que o corpo encontra a sua sombra.

Queria que soubesses que acho que és a pessoa mais lúcida que conheço.
Foi esse reconhecimento que me fez ligar-te naquele dia, dentro do carro, à beira do colapso. Eu sabia que se te ouvisse, ganharia um pouco dessa tua lucidez - e eu precisava tanto dela.
E de alguma forma precisava que soubesses que estava ali e que aquela era a minha situação. Não sei porquê mas precisava. Era de ti, não era de outra pessoa.


Continuam os pesadelos. A minha dor atenuada mantém-se. Não desapareceu: aquietou-se e ficou cá dentro. Vai criando um vazio à sua volta, um vazio de chuva, e eu vigio-a para que se mantenha contida, quieta, silenciosa e fria.

Gosto muito de ti. Muito. Faltou-me dizer isto.

24 de fevereiro de 2014



Querida J.,

Eu existo. Existo mesmo, a sério. Pequena, frágil e cheia de coisas na cabeça - eu existo.

Devias saber o seguinte: tenho 4 amigos apenas. Muito bons. Mas muito poucos.

A S. foi a minha última desilusão no que toca a amizades sérias e por isso tenho muito poucas e cada vez arrisco menos. De alguma forma evito que as pessoas me conheçam de facto, que saibam onde ficam as minhas dores e os meus medos para não correr riscos: há pontapés em mim que por vezes são fatais.
O pontapé que a S. me deu foi na cara e doeu-me o mundo.

E tu? Tu és o meu top 2 de amigos. Tu sabes tudo o que há para saber mesmo que o nosso tempo presencial se possa contar pelos dedos das mãos e dos pés, mesmo que não estejas no lançamento dos meus livros, mesmo que não estejas ao meu lado nas minhas desgraças.
Os meus sonhos continuam. Tenho estado nas notícias, faz um search com o meu nome e vê o que anda a acontecer.

Tenho muitas saudades de falar contigo e de te mostrar o que está cá dentro.

Cá dentro onde ninguém vê.


Escrevo-te logo com tempo.


Da tua,


I.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Querida I.,

Por vezes dói-me o peito. É uma dor funda, por detrás dos ossos e nem sempre sei a que devê-la, mas a deste domingo sei-o: foi para ti. Não sei nada de ti há algumas semanas. Onde estás? Como te sentes?
Gosto de ti, I. Bem sei que to digo poucas vezes.

Ás vezes não sei se a nossa relação é de verdade. O que é que nos une? Penso em ti, nas coisas que me contas, nas tuas histórias e depois penso que não conheço as tuas pessoas, os teus amigos, que não estou, de facto, na tua vida. Alguma vez te pareceu estranho? Sempre tive com os meus amigos uma relação de distância pautada por fases, mais ou menos longas, de intimidade próxima. Como se soubessemos todos que precisamos de ir ao mundo antes de voltar para casa, para o pé dos nossos, e como se nos deixassemos soltos sabendo que não nos perdemos. Mas connosco é diferente.

Também não sei porque me sinto tão fragilizada perante ti. Como se fosse sempre pequena e tu sempre grande. E, no entanto, quando te sinto pequena, não me sinto grande, sinto-me ainda mais pequena. Ás vezes não sei como te pensar.

Isto de que falo tem sido o tema mental destas semanas e talvez por isso o pense também em relação a ti. Preciso, cada vez mais, de saber o que é real na minha vida. O que existe. Ás vezes não tenho a certeza do que existe. Tu existes?

No outro dia, preparava-me para sair, estava animada, tinha acabado de jantar, ultimava detalhes, tinha gente à minha espera e, de súbito, enquanto me olhava ao espelho, não sei como nem de onde veio, mas fui engolida por uma boca de negrume. Foi uma espécie de tontura existencial ou, como vi dias mais tarde dito num filme, foi como se «tivesse tropeçado na realidade». Cambaleante, sentei-me na cama, e nesse momento de absoluta confusão perdi todas as certezas. Não sabia absolutamente nada. Era sexta-feira, perto das onze horas da noite, e eu, sozinha no meu quarto, tinha subitamente desaprendido tudo. Era como se a realidade fosse um fio que eu agarrava com força e que, num momento de pura distracção, larguei. Não sabia quem era, o que estava a fazer, se o que estava a viver era mesmo meu, e que vida era aquela? E era de quem? E eu, quem era? Não sei o que aconteceu e passou tão depressa quanto surgiu. Fiquei o resto do fim-de-semana de cama, com medo que as paredes sólidas do dia-a-dia se desintegrassem se eu me mexesse. Desde aí questiono a realidade das coisas. Há coisas que sinto, coisas que sei e coisas que existem. Às vezes as coisas que sinto não existem. Às vezes não sei o que existe. Às vezes as coisas que sei não são reais. E no meio disto tudo, ainda tenho que discernir a minha cabeça da realidade. A minha cabeça e a realidade às vezes diluem-se uma na outra. Também te acontece?

Não sei por que falo disto. Só queria dizer-te que o peito deste domingo foi teu. E perguntar-te como estás. Como estás?

Tua,
J.








domingo, 2 de fevereiro de 2014

Dia 3 de fevereiro de 1833



Não há nenhum mestre interior que possa estar no cerne daquilo que se passou. Porque foi demasiado mau, demasiado triste, demasiado doloroso. Não há mestre interior que consiga articular tal perversidade; e ainda que me odiasse profundamente nunca me infligiria tal desastre.

Foi um desastre.

Continuo com a ideia de que foi um sonho. Que sonhei. Negar é uma forma de lidar com a dor.

Eu nunca fugi da dor, minha querida J., sempre me aproximei dela.
E também não tenho medo. Dou a cara, o corpo. Se ela se aproxima, eu submeto-me, mas submeto-me de imediato e com a ideia clara que vou ter de sair dela um dia, para respirar melhor; que um dia ela sairá pelo seu próprio pé ou que terei de ser eu a acompanhá-la à porta e fazê-la ir.
Como vês não me recuso ao sofrimento, nunca o fiz.

Tenho nesta altura, pena.
De mim, sobretudo. Uma enorme pena.
Olho para o meu corpo e vejo-me tão frágil, tão profundamente frágil (se ao menos o mundo todo soubesse e me pudesse consolar).

Tenho consolado o meu próprio corpo. Dou-lhe prazer e deixei de sonhar.

O sonho era simples: eu deitada na minha cama, tinha sido mãe.
Alguém me dava um bebé. O bebé estava morto.
 Morto. Vestido, com o cheiro dos bebés, a roupa bonita e morto. Repetidamente morto e eu repetidamente desesperada.

E sim, isto não é ter um coração partido. É estar a aprender a colá-lo.



quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Muito minha I.,

Tenho andado com a tua carta na mala e reli-a já muitas vezes. Li-a ao almoço, por cima da sopa quente, li-a na berma de uma passadeira enquanto aguardava que o sinal para peões ficasse verde, li-a no escritório, ao pé da impressora e li-a agora, no quarto. Não sei como responder-te. Quando te perguntei se estavas a tomar medidas para cuidar do teu coração partido e me respondeste que o teu coração não estava partido, temi por ti. Senti em ti esta coisa que tenho visto em todo o lado, expresso das mais diversas maneiras, esta coisa que é o medo de sentir. As pessoas tornam-se gélidas por medo de sentir dor. Qual é o problema da dor? O que aconteceu é doloroso e essa dor deve ser sentida. É apenas natural que assim seja. Não te guardes dela porque ela apanha-te mais cedo ou mais tarde. E se for mais tarde estará já desfigurada porque imensamente distanciada do momento que a criou e poderá, aí sim, ter-se tornado um monstro enquanto tu não estavas a ver.

Nunca saberás se foi certa ou errada a tua decisão. Começa por aceitar isso. Não pôde ser de outra maneira porque não foi. Se alguma vez deres por ti a pensar que talvez tivesse sido melhor de outra maneira, pára por um momento e contempla as coisas que podes decidir vir a ter no futuro. Talvez haja um momento em que a decisão certa, tomada no momento certo, te mostre que estiveste certa também nesta decisão, neste momento.

Se momentos houver em que te sintas arrastada na torrente do erro, aprende a lição e identifica o caminho. Sempre que sentires que foi um erro, não o detestes, acarinha-o. Incorpora-o em ti. Deixa que te forme, que te expanda, que te elucide sobre aquilo que queres para ti e sobre quem queres ser. Aprender a lição é a maior homenagem que podemos fazer ao erro. Há mensagens nas coisas que acontecem se ao menos nos sentarmos quietos para ouvir.

Na noite em que me ligaste não te ouvi com empatia e carinho. Perdoa-me. Confesso que, para além do cansaço, que era real, desceu sobre mim uma profunda tristeza. Perguntei-me porque te fazias isto a ti própria, porque continuarias incautamente a causar-te danos, como se usasses as possibilidades que a vida contém para te sovares com elas, perguntei-me de que mestre interior serias marioneta e se ao menos tinhas consciência de que o eras. Há no fundo mais fundo de ti uma razão. Descobri-la é honrar tudo o que em ti permanece puro e verdadeiro.

Se te soar dura, talvez isso se deva a ter gravada em mim, com força de brasas, a noção de que a hora de virarmos costas às trevas e de avançarmos triunfantes para o resto da nossa vida, chegou.

Já terminaste de chorar?

Tua,
J.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Dia 22 de janeiro de 1833



Devia falar sobre o que aconteceu mas não consigo. Não tenho conseguido escrever sobre isto.




Hoje, durante uma curta caminhada, senti que estaria pronta para te escrever e aqui estou eu.

Gosto de pensar que sonhei: que foi um sonho breve e trágico.

Dividiram o meu sonho em 3 momentos e hoje cumpro o último: desta vez sozinha como tem de ser.

Confesso-te que gostava que o segundo momento do meu sonho tivesse sido mais violento e mais doloroso do que foi. Queria, de alguma forma, sentir na dor que me infligiam durante a execução, um castigo. Um castigo físico porque o merecia: e por isso o desejava profundamente. Mas não tive dor.

 Tive, no entanto, pesadelos recorrentes.

Quiseram que eu explicasse os meus pesadelos no primeiro momento: eu expliquei.
Hoje vão perguntar-me se os continuo a ter e vou mentir porque são meus e os mereço.

Ganhei um autocontrolo que não sabia que tinha e dei a mim própria um prazo  para chorar o que havia a chorar; depois deixar ir.
Deixar ir como fazemos quando alguém nos morre e um dia temos de nos despedir para sempre; porque chegou a hora, porque é tempo, porque precisamos.
 Confesso-te que ainda olho para o tecto com o olhos humedecidos quando me vejo sozinha numa sala ou num quarto, mas rapidamente recorro ao autocontrolo como uma linda dama vitoriana.

Talvez tivesse errado, minha querida amiga, talvez tivesse tomado a decisão errada.
Hoje não há recuo possível.

O meu corpo esta a sarar por dentro e curar-se-à numa questão de dias.

Um dia devia falar.