segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Dia 25 de Novembro de 2013


Querida J.,

Penso em escrever-te todos os dias como se escrever-te fosse a salvação para a inquietação das coisas que têm vivido na minha cabeça nas últimas semanas: estas nossas cartas viraram momentos sérios de libertação.

Como sabes, divido-me em duas partes: o meu corpo , que me acompanha, e eu própria, longe dos ossos e da carne que me veste. Não o faço por nenhuma outra razão se não porque o sinta profundamente.
 Tantas vezes olho o meu corpo com uma pena absurda dele: quando o acho só - porque se sente só e é só -  e porque ele tantas vezes acredita no impossível. Gostava de dizer "não acredites tanto" ( o meu corpo tem uma força imensa em comparação com o que vive cá dentro) e apetecia-me acariciá-lo e po-lo a dormir com a ternura de uma mãe que aconchega o seu próprio filho depois da desilusão.
Talvez o meu corpo seja o meu próprio filho.


E tem sofrido embates.


Mas queria voltar  a falar-te de amor.
 Disseste, na tua última carta, que acreditavas - como eu - que esse amor, eterno e único, pode existir e não ser apenas uma fantasia minha. Não sendo, e podendo ele ser então um facto, espero por ele com a certeza daqueles que se sentam na estação de autocarros sabendo que alguém os virá buscar.

Alguém me virá buscar, J.
Tenho a certeza que alguém virá.


Sei-te bem.
 Acabaram as vertigens, talvez o teu corpo tenha voltado ao seu sitio na Terra.
 Imagino que os nossos pés tenham um lugar na Terra: um lugar próprio e só seu, com medida própria. A Terra deve saber-nos nela e nós ibidem, por sermos presença. Imagino que conheça a existência de cada um de nós nela.
Sei-te apaixonada. Imagino que os teus olhos brilhem e Lisboa em frio te tenha tornado mais feliz: sei que qualquer coisa em ti se cumpre.

Voltei a ver fotografias. Regredi e tenho vergonha de ter mexido em coisas que não me pertencem.
A D. disse-me que houve uma altura da minha vida em que eu era assim feliz com S., como naquelas fotografias. Disse-me para ir procurar fotos. Eu fui. Estava bonita e feliz, em verdade.
Ás vezes ainda penso o que seria se não tivesse desistido de mim dentro daquela foto.
O que teria sido de mim?


escreve-me.

Da tua,

I.


quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Querida I.,

Tem sido uma luta ligar dois conceitos que até aqui me têm parecido irreconciliáveis: o amor e a liberdade. A luta de querer aquele tipo de ligação que está para além dos limites físicos do mundo, que abdica do controlo e das expectativas, que é sábio o suficiente para entender que a vida existe no êxtase completo de um momento bem vivido, que tem paciência anciã para esperar sem ânsia, para fazer o que tem de ser feito a cada momento, que sabe que a construção de uma relação se faz com as mãos e que a ligação, essa ligação transcendental de que falo, não se esgota nem se perde na distância física dos corpos. Duas pessoas ligadas por um fio invisível, do coração de uma ao de outra, da mente de uma ao de outra, e que correm mundo - se preciso for correr mundo para completar essa viagem de auto-conhecimento e auto-realização em que estamos todos imersos - mas que voltam, cada uma à sua respectiva ponta final do fio para partilharem, de entusiasmo juvenil na voz, as suas aventuras vividas.

Neste momento há uma pessoa na minha vida que me faz crer que isto é possível. Partilho contigo «a firme certeza de que um grande amor existe e é possível». Pergunto-me se será assim o início. Nem as dúvidas me demovem da felicidade que sinto neste momento. Sinto-me tão segura nesta exploração que não tenho medo. Olho para D. e sinto que ela é a pessoa 'I got your back' por que tenho esperado. Estamos muito lentamente a conhecer-nos. E que deleite é esta lentidão: as coisas desveladas devagar, o sabor maximizado de cada novo encontro, de cada nova revelação, de cada novo espaço interior aberto para ser mostrado. Nunca vivi isto antes sem doença à mistura. Sem ter no peito uma ansiedade assassina, que desesperava e queria tudo logo, à pressa, à bruta, para saber logo tudo, se era possível, se não, para não ter de permanecer no terreno dúbio do «quem sabe?». Só que essa ansiedade-erva-daninha não se esgotava quando os véus caíam todos e a natureza da relação se mostrava em fim, não. Ela continuava. Continuava esfaimada, a cada nova situação nova, um medo renovado de perder, asfixiante e demolidor e a pressa, continuada, de levar a relação até ao final, para ficar já a saber o final, para não me dar à esperança, para não esperar que as coisas crescessem só para que depois a destruição fosse impossível de gerir.

Mudei. Mudei tanto. E estou tão feliz por me dirigir, cada dia mais convictamente, às coisas verdadeiras que integrarão o meu futuro.

Não creio que amemos apenas uma vez creio, sim, que amamos uma vez pela primeira vez e que essa experiência nos transforma. Felizmente esta minha crença atira lá para a frente, para mais perto da sapiência anciã, essa experiência de amar pela primeira vez. Porque só depois de cuidadas as nossas feridas primordiais e reconciliados connosco mesmos teremos o espaço e a destreza de saber viver esse amor que tanto desejamos.

Amsterdão é uma cidade linda. É chamada «A Veneza do Norte». Desfruta da água e anda de bicicleta.

Sempre tua,
J.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Dia 08 de Novembro de 2013


Querida J.,

Tenho estado no norte em trabalho.
Um dos nossos trabalhos vai em breve levar-nos a Amsterdam. Acho que vou aproveitar para 3 dias de férias numa cidade que acolhe bem e é bonita de se ver.
Depois disto vem a publicação do livro novo e mais dois documentários.
Preciso que tragas o teu corpo ao lançamento e olhes para mim com algum amor.

E tu? e as vertigens?
Sabes, ontem vinha no carro, a conduzir debaixo de uma chuva imensa, e dei por mim sozinha a pensar que o amor sem eternidade não pode ser amor de verdade.
Estive estes dias num jantar com pessoas muito próximas de mim que desacreditavam tudo aquilo que eu tenho de mais sério e mais puro cá dentro: a firme certeza de que um grande amor existe e é possível. E que esse amor durará até à altura em que usarei prótese dentária e as minhas pernas se tornem apenas dois paus de corpo flácidos e débeis.
Se isso não existir para mim, remeto-me à solidão. Ela será a única resposta vivencial para as minhas expectativas.
Ou o amor - tal como eu o acredito - ou a solidão que os gatos trazem à vida de uma mulher.

O que sinto pelo P. tem vindo a mudar. Continuo a achar que só amamos uma vez a sério, desesperadamente e eternamente. O P. teve já a sua história: mais bonita e mais completa...e por isso duvido que haja nele espaço para um amor como aquele que eu procuro para mim.
Ou duvidava.

Por vezes olho para ele e vejo um bocadinho de eternidade e de amor.
Há uma margem de erro que temo.


Escrevo-te de Amsterdão.

beijos

Da tua,

I.


sábado, 2 de novembro de 2013

I.,

A última carta partiu-me o coração como só o amor consegue. Estavas tão frágil quanto eu, ali sozinha, à minha espera, com os teus sentimentos e as tuas emoções em relação ao hospital todas no colo. Estavas tu e o teu corpo. Lembraste-te disso? E eu, inconsciente, exposta duas vezes, porque nua primeiro e porque carne aberta e invadida a seguir e tu, nua também, de outra maneira, tão sozinha, tão sozinha, querida I. Quero morrer primeiro que tu só para poder condignamente retribuir esse momento de puro amor. É preciso peito para isto, I.

Passei a semana toda com vertigens e lembrei-me muito do Kundera e de uma parte da Insustentável Leveza do Ser: «Aquele que deseja continuamente ‘elevar-se’ deve esperar um dia pela vertigem. (...) A vertigem não é o medo de cair, (...) é a voz do vazio por baixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo de cair do qual, aterrorizados, nos defendemos.»
Tem sido como se tivesse continuamente a ser puxada para o centro da terra por um vórtex que só eu sinto. Fiquei a semana toda de cama. Tenho desejado continuamente elevar-me e sou assim castigada? A terra puxa-me e eu resisto porque tenho medo de cair. Se é dessa resistência que nasce a vertigem, se é da força que fazemos para não nos deixar cair, então a vertigem e a ansiedade devem ser aparentadas.

Queria falar-te de Novembro mas estou fraca e preciso de descansar. Perdoa-me a frugalidade.

Mas conta-me, como estás? Como está o amor dentro de ti? Falas-me disso?

J.