quarta-feira, 30 de outubro de 2013

30 de Outubro de 2013


Querida J.,


Devia começar por te contar como foi o dia em que te internaram.

Lisboa chovia. As minhas pernas subiram a rua que desaba no hospital de S. José. Subiram-na:  não estavam obrigadas a ir, mas sabiam que tinham de fazer aquele percurso todo novamente porque algo de muito importante se ia passar, era sua obrigação moverem-se.

Foi, de facto, um ciclo que se fechou.

Quando cheguei ao hospital tinhas o telemóvel desligado. Cheguei às 08:28 e estava desligado.
Tive de procurar-te. Os corredores, as pessoas, o meu atraso, o teu corpo, a chuva, os doentes a passar, as enfermeiras, os médicos, as suas batas a olharem-me; e eu e o meu corpo a querermos saber de ti.

Deram-me um papel e explicaram-me onde ias estar. Cama 20.
Quando cheguei tinham-te levado há pouco tempo: o tempo suficiente para não te ver.
Disseram-me que me podia ir embora descansada, que voltarias em 3-4 horas. Sugeriram-me um passeio e umas compras na baixa entre risos. Não perceberam o que eu fazia ali, não perceberam a importância.
 Eu não lhes ia explicar.
Disse que preferia ficar e sentei-me. Eu e o meu corpo ficámos ali. O Roth fez-me companhia.

Não ias morrer mas eu precisava de estar ali. Não te estava a velar, estava a certificar-me que aqueles médicos iam fazer bem o seu trabalho e te manteriam viva.

Não compreendo esta minha obsessão em relação à tua vida, não acho que seja explicável mas tenho a certeza que existem ligações que não são deste mundo.
Vinhas meio a dormir e profundamente frágil. Trazias soro, um dreno, tubos e uns olhos que se reviravam de sono.
Disseram-me que se fosse familiar podia entrar.Disse que era. Certifiquei-me que respiravas e isso bastou-me.

E depois dei-te o telemóvel para outros saberem de ti, beijei-te e vim-me embora com a certeza que tudo tinha voltado ao seu lugar.

Da tua,


I.
Minha querida I.,

Quando abri os olhos, eras tu quem estava lá. A dimensão simbólica da cirurgia fechou-se em ti: foste a primeira pessoa que vi depois de ter renascido. Mas, porquê tu?

Na noite anterior tinha saído com D. Fui a um concerto que mais pareceu o prelúdio do paraíso e cheguei ao hospital à meia-noite, a achar que D. era a pessoa com quem ia passar o resto da minha vida. Uma semana antes, encontrámo-nos depois de seis meses sem nos vermos, e quando olhei para ela, o meu olhar parou no seu como se reconhecesse alguém futuro. Mais tarde nessa noite, acendeu-me o cigarro e sentou-se ao meu lado. Olhávamos ambas em frente, lado a lado, enquanto conversávamos, e não pude afastar de mim a fantasia de que aquilo era certo e de que estávamos, já, naquele momento, juntas na vida. 

Mas falemos do dia seguinte.

A excisão do caos. Depois de 10 anos de busca caótica, resolvi que o momento da cirurgia encerraria um ciclo e chamei-lhe assim. Não creio que haja melhor momento para reiniciar e ser-se novo que depois de um coma induzido. Sendo um quisto congénito e tendo-se tornado visível no final da minha última relação, depois de ano e meio de stress crónico, achei que o significado era por demais evidente: um caos emocional começado com a mãe teria forçosamente que terminar com a revisitação da «mãe», 29 anos depois. A partir do momento em que soube que teria de fazer excisão, chamei-lhe caos e preparei-me para a despedida.
A. coroou de forma magnífica o clímax desta fase e despedi-me dela, como símbolo aglomerador de tudo o que a precedeu. O que observei de errado naquela vida pude vê-lo, com humildade, na minha. A. foi, por assim dizer, uma lupa magnificadora, uma incursão numa casa de espelhos, em que assustadoramente vi evidenciadas características que estavam, convenientemente, arredadas da minha consciência. Os espelhos não inventam nada, querida I., o que os espelhos mostram, por muito aterradora que seja a visão, sempre existe em nós.

E, depois de tudo, abri os olhos e vi-te. Foste uma aparição fugaz, como sempre és, e horas depois, quando acordei de novo, embora não me lembrasse de te ter visto, sabia que tinhas estado lá. O que me transmites é isto, esta tranquilidade da imanência: não é premente ver-te, estar contigo, ter a experiência mundana de ti, mas saber que existes, só saber que existes, pacifica-me.

A minha cicatriz é imensa e tenho-a à mostra com orgulho.

Tua,
J.

domingo, 6 de outubro de 2013

Dia 06 de Outubro de 2013


Querida J.,

Ver-te na sexta-feira foi tão bom.
Ás vezes tenho a sensação que te conheço há mil anos e que podem passar mais mil porque o meu passado é o meu futuro: e tens o quisto mais sexy que alguma vez vi.
Vim lançar uma proposta nova ao Norte, os meus projecto continuam a escrever-se a si próprios sem mim. O livro está quase a sair.

Quando me disseste que ias ser operada no hospital de S. José levei um soco no estômago. Talvez não te lembres mas foi ali que o P. chegou depois de morto: o S. José é o único hospital deste país que me faz tremer e reviver o dia que mudou a minha vida para sempre. Se o P. não tivesse morrido eu não teria percebido o mundo mas, e sobretudo, eu nunca me teria percebido a mim própria.
Decidi enfrentar os meus medos e dia 23 estou lá: por ti, mas sobretudo porque estou a construir um caminho novo,  a enfrentar as coisas que ainda trago comigo.

Vim a casa do P. este fds e resolvi espreitar fotografias; é um erro sempre que o faço. Fiz uma coisa muito feia e procurei fotos. Elas acharam-me.
Há qualquer coisa nele de feliz com ela nas fotos, têm uma moldura bonita que faz o tempo parar no dia do seu casamento.
A fotografia deles disse-me que eu nunca vou ter aquilo: porque já foi vivido, porque não é meu. Nada aqui é meu nem eu queria que fosse.
A minha própria casa antiga é um sitio onde nunca mais espero voltar, esta é uma outra casa antiga num imaginário diferente.
As fotografias deles dão-me pena e eu não sei o que faço aqui. Acho que não faço nada, que estou no caminho errado, que a curva para o grande amor ficava lá atrás...mas não seria honesta se não te dissesse que quando faço amor com ele é como se tudo fizesse um enorme sentido: o cheiro dele, os olhos, a curva do queixo. Há qualquer coisa nele que é meu e que eu gostaria de puder manter até talvez não ser mais possível. Há dias em que preciso fazer amor com ele para conseguir pensar.
E assim vai o mundo.

Vejo-te esta semana?

Da tua,
I.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

03 de Outubro de 2013

Querida J.,


Li a tua carta a achar que tinha sorte em te ter.

O livro novo sai em breve. Preciso de ti lá, no meio das pessoas. Saber-te perto faz-me ganhar um conforto quase ridículo; como quando somos pequenos e sabemos que alguém está por perto.

Promete-me que vais. Amanhã escrevo-te com mais tempo.

Da tua,


I.