quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Minha querida I.,

Quando abri os olhos, eras tu quem estava lá. A dimensão simbólica da cirurgia fechou-se em ti: foste a primeira pessoa que vi depois de ter renascido. Mas, porquê tu?

Na noite anterior tinha saído com D. Fui a um concerto que mais pareceu o prelúdio do paraíso e cheguei ao hospital à meia-noite, a achar que D. era a pessoa com quem ia passar o resto da minha vida. Uma semana antes, encontrámo-nos depois de seis meses sem nos vermos, e quando olhei para ela, o meu olhar parou no seu como se reconhecesse alguém futuro. Mais tarde nessa noite, acendeu-me o cigarro e sentou-se ao meu lado. Olhávamos ambas em frente, lado a lado, enquanto conversávamos, e não pude afastar de mim a fantasia de que aquilo era certo e de que estávamos, já, naquele momento, juntas na vida. 

Mas falemos do dia seguinte.

A excisão do caos. Depois de 10 anos de busca caótica, resolvi que o momento da cirurgia encerraria um ciclo e chamei-lhe assim. Não creio que haja melhor momento para reiniciar e ser-se novo que depois de um coma induzido. Sendo um quisto congénito e tendo-se tornado visível no final da minha última relação, depois de ano e meio de stress crónico, achei que o significado era por demais evidente: um caos emocional começado com a mãe teria forçosamente que terminar com a revisitação da «mãe», 29 anos depois. A partir do momento em que soube que teria de fazer excisão, chamei-lhe caos e preparei-me para a despedida.
A. coroou de forma magnífica o clímax desta fase e despedi-me dela, como símbolo aglomerador de tudo o que a precedeu. O que observei de errado naquela vida pude vê-lo, com humildade, na minha. A. foi, por assim dizer, uma lupa magnificadora, uma incursão numa casa de espelhos, em que assustadoramente vi evidenciadas características que estavam, convenientemente, arredadas da minha consciência. Os espelhos não inventam nada, querida I., o que os espelhos mostram, por muito aterradora que seja a visão, sempre existe em nós.

E, depois de tudo, abri os olhos e vi-te. Foste uma aparição fugaz, como sempre és, e horas depois, quando acordei de novo, embora não me lembrasse de te ter visto, sabia que tinhas estado lá. O que me transmites é isto, esta tranquilidade da imanência: não é premente ver-te, estar contigo, ter a experiência mundana de ti, mas saber que existes, só saber que existes, pacifica-me.

A minha cicatriz é imensa e tenho-a à mostra com orgulho.

Tua,
J.

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